sexta-feira, 19 de março de 2010

O Pai

foto: bnps
Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.
*
Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.
*
Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.
*
Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.
*
Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.
*
O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.
*
Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...
*
E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.
*
Pablo Neruda, in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage

terça-feira, 16 de março de 2010

AMIGO

foto: bnps
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!
*
"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
*
"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada!
*
"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
É um trabalho sem fim,
Um espaço sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!
*
Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca,

sexta-feira, 12 de março de 2010

Sem Palavras

foto: bnps
Brancas, suaves mãos de irmã
Que são mais doces que as das rainhas,
Hão de pousar em tuas mãos, as minhas
Numa carícia transcendente e vã.
*
E a tua boca a divinal manhã
Que diz as frases com que me acarinhas,
Há de pousar nas dolorosas linhas
Da minha boca purpurina e sã.
*
Meus olhos hão de olhar teus olhos tristes;
Só eles te dirão que tu existes
Dentro de mim num riso d’alvorada!
*
E nunca se amará ninguém melhor;
Tu calando de mim o teu amor,
Sem que eu nunca do meu te diga nada!...
*
Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"

segunda-feira, 8 de março de 2010

Essa mulher, a doce melancolia

foto: bnps

Essa mulher, a doce melancolia
dos seus ombros, canta.
O rumor
da sua voz entra-me pelo sono,
é muito antigo.
Traz o cheiro acidulado
da minha infância chapinhada ao sol.
O corpo leve quase de vidro.
*
Eugénio de Andrade

Poema Melancólico a não sei que Mulher

foto: bnps

Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.
*
Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...
*
Miguel Torga, in 'Diário VII'